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MAL-ASSOMBRADO MUNDO NOVO

Acabo de viajar pela África do século XIX, através de uma narrativa intitulada “PANDORA EN EL CONGO”. Nela, o catalão Albert Sánchez Piñol aborda, pelo viés da fantasia, o absurdo das relações entre colonizadores e colonizados. Os colonizadores eram os belgas e os colonizados eram os nativos do Estado Livre do Congo, nome bonito dado a uma horrorosa empreitada escravagista promovida entre 1895 e 1908 pelo então rei belga Leopoldo II. Tal absurdo faz com que o personagem-narrador comece a perder a Fé, a virtude teologal com que se justificava a invasão dos mundos novos, o roubo, o tráfico de escravos, o genocídio: a Caridade já não fazia mais nenhum sentido. Como lhe restava ainda um pouquinho de Esperança, lá pelas tantas o narrador passa a invocar os fantasmas, as assombrações, as quimeras que povoavam seu imaginário na infância, cuja ameaça era fichinha perto das espadas, das armas de fogo, dos instrumentos de tortura e dos grilhões dos monstros humanos: a aparição de algum espectro do além lhe devolveria a certeza de que existe outro mundo, de que a imortalidade não era uma conversa fiada, de que tudo não acabava em nonsense.

Pois é. Fecho o volume do “PANDORA”, me alongo com toda a concentração, aspiro e expiro, lenta e profundamente, em busca de um abrigo contra as bombas que iluminam os céus do nosso admirável mundo novo.

Ali, em São Paulo, um desembargador dá carteirada e humilha o policial que, cumprindo a lei, o multava por transitar sem máscara em plena pandemia do covid-19. Ainda em São Paulo, morador de um condomínio de luxo humilha um entregador de comida, ostentando com gestos e palavras todo seu preconceito de classe e de cor.

Aqui, em Minas, o governador do Estado permite que sua polícia desaloje, em plena pandemia, mais de 400 famílias de uma fazenda em que vivem e trabalham há 23 anos e são referência de produção agroecológica na região.

Lá, em Recife, uma menina de 10 anos, engravidada por um tio, é chamada de assassina por um grupo que se reuniu na porta do hospital para manifestar sua posição antiaborto.

Respiração. Alongamento. Como o personagem de PANDORA, preciso soprar a brasa da Esperança, não deixar cair a peteca da Fé. Para tanto, quem sabe eu deva buscar inspiração em filmes de terror? Talvez devesse reler Allan Poe, Bram Stoker, Lovecraft. Ou serão os vampiros da série crepuscular de Stephenie Meyer que me trarão a consoladora promessa de um mundo assombrado por uma fantasmagoria mais light?

 

Por: Afonso Guerra-Baião, professor e escritor. Publicou as narrativas O INIMIGO DO POVO e A NOITE DO MEU BEM pela Amazon. Tem textos publicados em revistas literárias como o Suplemento Literário de Minas Gerais. Colabora em jornais e em sites como Curvelo online. Publica também em sua página no Face e em seu blog no You Tube.
Acaba de publicar SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER, um livro que explora duas vertentes da poética clássica: a lírica, que provoca a emoção e a reflexão, e a satírica, que libera o riso e a catarse.
Afonso é torcedor do Galo.

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