Quando viu o anúncio de emprego, Branca de Neve pensou que era sua oportunidade de voltar a trabalhar com pessoas simples e gentis como eram os anões da devastada floresta. Quem sabe seria possível reviver uma linda história aqui, na selva de pedra da cidade. O endereço do anúncio era um prédio de concreto e vidro, desses que Branca de Neve ainda chamava de arranha-céu. Tanto o número do prédio quanto o da sala da entrevista terminavam em sete, o que lhe pareceu um bom augúrio. Na porta da sala uma placa anunciava: ESCRITÓRIO DOS ANÕES DO ORÇAMENTO. Mas o entrevistador não tinha nada de anão: era um homem alto, cujo terno azul escuro parecia adensar o azul claro de seus olhos espertos. Com um sorriso alvar, ele foi dizendo:
– Você já começa ganhando ponto no quesito “autenticidade ideológica”.
– Sério? – indagou ela. A entrevista nem começou!
– Ainda há pouco reprovei dois candidatos por falsidade ideológica: um tinha Direito no sobrenome, mas assinou a lista de presença com a mão esquerda. Outra se chamava Clarice, mas era uma mulata.
– Ah… bem… Espero não decepcionar. Preciso muito desse trabalho.
– Nós, Anões do Orçamento, também precisamos do nosso, por isso escolhemos a dedo nossos ajudantes.
– Que preciso fazer?
– Você sabe lavar?
– Tenho experiência nisso! Lavei as roupas dos sete anões por muitos anos!
– Nada de roupa. Falo de lavar dinheiro.
– Bem, a internet tem tutoriais pra tudo. Aprendo rápido!
– Sabe passar?
– Também passava as roupas lá na casinha da floresta.
– Falo de passar pano sobre as críticas da oposição, alimentando a mídia chapa-branca com fake news.
– Ah, sempre deixei a chapa do fogão brilhando, lá na mata!
– Sabe varrer?
– Eu fazia toda a limpeza lá nos sete anões.
– Aqui você vai limpar nossos rastros e impressões digitais, além de varrer pra baixo do tapete toda evidência de ilicitudes.
– Preciso ver no dicionário o que é ilicitude, mas uma palavra tão sonora não deve indicar um trabalho sujo…
– Sabe costurar?
– O senhor não lia histórias quando criança? Eu costurava…
– Nada de meias nem cuecas. Aqui vai costurar nossas emendas ao orçamento e os acordos para aprová-las.
– Oh, pra quem costurava roupas inteiras, costurar umas emendas é moleza…
– Você sabe cortar?
– Quem cortava o cururu e picava os legumes era o Feliz…
– Falo em cortar gastos da saúde e da educação, pra sobrar mais dinheiro pras nossas emendas, tá entendendo?
– Estou começando a desconfiar!
– Sabe rachar?
– Quem rachava a lenha era o Mestre.
– Rachar salário de funcionários, fazer rachadinha, já ouvir falar?
– Estou ouvindo. Não deve dar calo nas mãos, mas suja a…
– Bom. Você passou na primeira prova. Se passar na segunda, nós te indicaremos pra representar os Anões do Orçamento no Ministério do Dinheiro.
– No Ministério do Dinheiro? Mas os anões do orçamento são do século passado! Agora não é a nova política?
– Voltamos, querida! Estamos de novo no centrão do jogo do poder! E vamos restaurar até você, que é do século dezoito!
– Indelicado da sua parte, isso de lembrar minha idade! Além disso…
– Ora, querida, você não parece ter mais que vinte e um anos!
– Não enrola! Qual é a próxima prova?
– Bem, está vendo aquele belo e amplo sofá?
– É um sofá cama! E daí?
– Então, você pode fazer a prova deitada. Fique bem à vontade…
Branca de Neve piscou três vezes:
– Não me confunda com a Bela Adormecida! Eu não engulo iscas envenenadas nem durmo em serviço!
Dito isso, virou as costas para o anão do orçamento e saiu da sala de cabeça erguida.
Por: Afonso Guerra-Baião, professor e escritor. Publicou as narrativas O INIMIGO DO POVO e A NOITE DO MEU BEM pela Amazon. Tem textos publicados em revistas literárias como o Suplemento Literário de Minas Gerais. Colabora em jornais e em sites como Curvelo online. Publica também em sua página no Face e em seu blog no You Tube.
Acaba de publicar SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER, um livro que explora duas vertentes da poética clássica: a lírica, que provoca a emoção e a reflexão, e a satírica, que libera o riso e a catarse.
Afonso é torcedor do Galo.