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KAFKA, A MENINA E A BONECA

         Meu avô costumava dizer que os piores sonhos são os bons, pois a gente fica decepcionado ao acordar deles, ao passo que nos sentimos felizes por despertar de sonhos ruins que, por isso, são os melhores.

         Acontece que, às vezes, a realidade é tão cruel que dispensa os pesadelos e nos encontramos, de olhos bem abertos, numa vigília kafkiana (que o digam as crianças engaioladas por Donald Trump). Mas o que é kafkiano? Adjetivo referente a Franz Kafka (1883-1924) ou à obra desse escritor de língua alemã, nascido em Praga, dizem os dicionários. É o absurdo como lógica de um mundo sombrio, sem cores, cercado de culpa e burocracia a definir bem o nosso tempo, diz Warley Belo, mestre em Ciências Penais da UFMG.

Quem já passou pela experiência de ler “A Metamorfose”, “O Processo” ou “A Colônia Penal”, sabe por que esse adjetivo evoca a atmosfera de angústia e mal-estar em que o ser humano se debate no mundo que ele mesmo criou: a civilização que promove a alienação, a reificação do homem, transformando-o em peça de engrenagens sociais, econômicas e políticas. Quem se lembrar do operário de “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, entalado nos mecanismos de uma máquina gigantesca, terá uma imagem, em versão humorística, do universo kafkiano.

         Franz Kafka faleceu no dia 3 de junho de 1924. Sua obra continua atual e sempre necessária. Nessa data, quero contar um episódio pouco conhecido, revelador de um Kafka que, afinal, não perdeu a ternura.

         Dora Dymant, sua companheira, revelou a Max Brod (amigo e editor) que, no último ano de vida, Kafka encontrou num parque de Berlim uma menina chorando pela boneca perdida. Para consolar a garota, ele se apresentou como um “carteiro de bonecas”, encarregado de lhe trazer as cartas daquela que não estava perdida, mas em maravilhosa viagem pelo mundo afora. Durante três semanas, com a mesma aplicação dedicada a seus romances e contos, Kafka escreveu as cartas da boneca à menina, decerto contando sobre paisagens, climas, cidades, povos e costumes de todos os cantos do mundo.

         Klaus Wagenbach, estudioso de Kafka, tentou inutilmente, durante anos, encontrar essa menina, para que todos pudéssemos partilhar da última obra desse que, segundo César Aira, “foi o maior descobridor de signos da vida moderna”. Só que, nesse caso, ao invés de signos do visível, Kafka acabou por nos legar, no invisível e no silêncio, a miragem de uma utópica linguagem de felicidade.

 

Por: Afonso Guerra-Baião, professor e escritor. Publicou as narrativas O INIMIGO DO POVO e A NOITE DO MEU BEM pela Amazon. Tem textos publicados em revistas literárias como o Suplemento Literário de Minas Gerais. Colabora em jornais e em sites como Curvelo online. Publica também em sua página no Face e em seu blog no You Tube.
Acaba de publicar SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER, um livro que explora duas vertentes da poética clássica: a lírica, que provoca a emoção e a reflexão, e a satírica, que libera o riso e a catarse.
Afonso é torcedor do Galo.

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