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ENTRE A RAIZ E A FLOR, OS SONS E OS SENTIDOS

A professora Maria Esther Maciel, em uma crônica publicada no “Estado de Minas”, relata o seguinte: uma amiga ouvia em seu carro o Prelúdio da Suíte n° 2 para violoncelo, de Bach. No posto, o jovem frentista, antes de encher o tanque, ficou um tempo junto à janela do carro, atento ao som que vinha lá dentro e disse que aquela era a música mais linda que ele já tinha escutado. Depois, ao trazer a maquininha do cartão, perguntou que música era aquela, tão maravilhosa. A amiga de Maria Esther fez uma cópia das seis Suítes para solo celo, na interpretação de Antônio Meneses, e levou-a, no dia seguinte, para o frentista que tinha ouvidos para ouvir muito além dos hits que nos são impostos no dia a dia.

Do jornal para um livro de cabeceira: “Fenomenologia da obra literária”, de Maria Luiza Ramos. Não se assuste, vou só reproduzir o caso com que ela ilustra o papel da intuição sensível. Veja só o que a professora conta: “Certa vez reunimo-nos em casa com alguns amigos, a ouvir uma série de poemas gravados, quando a empregada, que tirava a mesa do jantar, parou à porta e ali permaneceu até o final da audição. Chamou-nos a atenção o seu inesperado interesse e, quando lhe perguntamos se havia gostado, respondeu num suspiro: – É tão lindo!” A empregada era analfabeta e “os poemas eram de difícil apreensão, até mesmo para pessoas iniciadas”. Um desses poemas era o soneto “Entre a raiz e a flor” de Jorge de Lima, que transcrevo no final desta crônica, para que compartilhemos um pouco da experiência narrada. E Maria Luiza conclui: “O que sensibilizou a mulher foi a voz do declamador, o ritmo dos versos, a musicalidade das frases, a pura emoção, afinal”.

“Existe texto e existe repetição”, disse outro autor de cabeceira, Roland Barthes. Os sucessos que infestam a mídia são da ordem da repetição. Músicas como as de Bach, textos como os de Jorge de Lima, se situam no campo da textualidade: o que transforma a linguagem em “casa do ser”.

Para rematar: não é preciso iniciação nem erudição para experimentar a epifania do ser: basta ser capaz de abrir-se para o que não é o mesmo, para o que não é o óbvio, para o que não é repetição, para o que significa, no dizer de Gabriela Llansol, “o encontro inesperado do diverso”.

Entre a raiz e a flor: o tempo e o espaço,

e qualquer coisa além: a cor dos frutos,

a seiva estuante, as folhas imprecisas

e o ramo verde como um ser colaço.

Com o sol a pino há um súbito cansaço,

e o caule tomba sobre o solo de aço;

sobem formigas pelas hastes lisas,

descem insetos para o solo enxuto.

Então é necessário que as borrascas

venham cedo livrá-la da cobiça

que sobe e desce pelas suas cascas;

que entre raiz e flor há um breve traço:

o silêncio do lenho, ― quieta liça

entre a raiz e a flor, o tempo e o espaço.

LIMA, Jorge de. Poesia completa. Org. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p.474.

Por: Afonso Guerra-Baião, professor e escritor. Publicou as narrativas O INIMIGO DO POVO e A NOITE DO MEU BEM pela Amazon. Tem textos publicados em revistas literárias como o Suplemento Literário de Minas Gerais. Colabora em jornais e em sites como Curvelo online. Publica também em sua página no Face e em seu blog no You Tube.
Acaba de publicar SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER, um livro que explora duas vertentes da poética clássica: a lírica, que provoca a emoção e a reflexão, e a satírica, que libera o riso e a catarse.
Afonso é torcedor do Galo.

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