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NA GALÁXIA DE GUTENBERG

          Nunca sinto o tempo passar numa sala de espera porque sempre vou prevenido, acompanhado de um livro, um exemplar no caso do livro físico, ou uma biblioteca inteira, no caso do meu e-reader. E lá estava eu, absorvido pela leitura, navegando as páginas, realizando a performance do leitor como viajante, que Alberto Manguel tematiza em “O leitor como metáfora”. Não era esse o livro que eu estava lendo, não sei mais qual era, nem é isso o que importa aqui. Lá estava, embalado na leitura, quando uma pessoa, na cadeira ao lado, procurando alguma forma de matar o tempo, resolveu puxar conversa. Se me interrompeu a viagem, se me tirou da vertigem com que o texto me arrebatava a outras eras e outros mundos, se me trouxe de volta à prosaica realidade da sala de espera, a tal pessoa teve a perspicácia de me atrair minha atenção com iscas adequadas. Falou sobre como admirava as pessoas que leem, que essa é uma virtude que o mundo está perdendo, todos agora só no celular, acompanhando notícias falsas e mensagens mal redigidas, e por aí afora. Disse que ia seguir meu exemplo e pediu a indicação de algum livro que a ajudasse a se distrair, em momentos como aquele. Por fim me perguntou: “Você gosta de ler best-sellers”? A pergunta foi feita com a singela ingenuidade de quem ignora que best-seller não é um gênero textual. Lembro que divaguei um pouco e acabei contando uma história sobre como o maior best-seller da história, a Bíblia, ajudou dois ingleses a passar as horas, enquanto um esperava que o outro lhe desse passagem na pinguela sobre o córrego que pretendiam atravessar em sentidos opostos. O primeiro começou a ler a Bíblia, desde o começo, lá no Gênesis; o segundo encheu calmamente o cachimbo e se pôs a fumar. Repetiu várias vezes a operação e, quando seu pacote de fumo acabou, o outro ainda não tinha terminado o Êxodo. Ele então bateu gentilmente no ombro do oponente e disse: “O cavalheiro, por gentileza, pode me emprestar seu livro, quando terminar a leitura”?

          Em outro momento, numa semelhante situação de espera, eu tinha em mãos meu “SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER”, ainda lambendo a cria, pois o livro acabava de vir à luz. E, como da outra vez, uma pessoa puxou assunto. Parece ser comum a curiosidade pelos excêntricos viajantes dessa pequena nave de papel. Dessa vez me perguntaram direto pelo livro que estava lendo. Quando soube que era de minha autoria, a curiosidade aumentou. Meu interlocutor fez questão de folhear o livro, elogiou a bela capa desenhada por Rubem Filho, a primorosa diagramação de Gabriel Bicalho e a qualidade da edição, exibindo alguma noção da matéria. Mas, me devolvendo o livro sem ler nenhum dos sonetos, perguntou: “Qual é o tema do livro”? Desconversei. Acontece que, ao contrário da conversa cotidiana e da linguagem referencial, o texto literário não suporta nenhuma redução de sentido. Redigindo essa crônica, encontrei num livro de Hilary Mantel uma frase que poderia servir de resposta à pergunta do meu interlocutor. Trata-se de uma reflexão que a autora atribui a Thomas Cromwell: “Um estatuto é escrito com o objetivo de aprisionar o significado; um poema, o de escapar dele”.

          Bem, para matar tempo na quarentena e preencher o espaço dessa crônica, convido você a viajar em um soneto inédito que ilustra a questão do texto criativo, aquele que, por sorte, oscila entre tema e fuga.

A folha em branco me convida à letra,

ao talhe da palavra, ao seu risco

na linha, corda bamba do rabisco,

que traço sobre páginas de areia,

em trama entretecida: meu navio

de argonauta fica preso à teia

de encantos dos cantares das sereias

que gravo e reconto com meus grifos:

no casco do meu barco de papel,

nas velas soltas contra o azul do céu,

nas folhas pássaras, nas nuvens brancas,

desenho com carvão o ideograma

que dá ao mistério a forma definida

de espuma flutuante em água viva.

 

Por: Afonso Guerra-Baião, professor e escritor. Publicou as narrativas O INIMIGO DO POVO e A NOITE DO MEU BEM pela Amazon. Tem textos publicados em revistas literárias como o Suplemento Literário de Minas Gerais. Colabora em jornais e em sites como Curvelo online. Publica também em sua página no Face e em seu blog no You Tube.
Acaba de publicar SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER, um livro que explora duas vertentes da poética clássica: a lírica, que provoca a emoção e a reflexão, e a satírica, que libera o riso e a catarse.
Afonso é torcedor do Galo.

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