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NO TEMPO EM QUE OS HOMENS FALAVAM

Naquele tempo os homens perderam o dom da linguagem e a palavra foi passada aos animais. Os bichos então se reuniram para comemorar o que era para uns uma dádiva, para outros uma conquista. Coube à Coruja abrir os trabalhos dessa primeira assembleia animal. Mas antes que ela abrisse o bico, o Papagaio já apresentava uma questão de ordem, reivindicando para si a presidência da sessão, baseado num direito histórico: o de ter sido o primeiro bicho a falar. Foi calado por uma sonora vaia e ainda ouviu poucas e boas: “Dá o pé, louro burro!”, gritou a Gralha. “Repetidor de tolices humanas!”, berrou o Cordeiro. Dona Coruja bateu o martelo, restabelecendo a ordem e o silêncio no plenário da clareira apinhada de bichos de todo gênero, espécie e raça. Não foi dessa vez, porém, que conseguiu falar, interrompida agora pelo Lobo que queria lavrar um protesto contra a fala do Cordeiro. “Não se pode generalizar! Nem sempre o bicho homem falou tolices. Proponho aqui um voto de louvor à fábula do Lobo e do Cordeiro e que seu autor, La Fontaine, seja imortalizado como patrono de nossa Academia de Letras.” A reação do Porco foi imediata: “Que conste em ata o veto suíno a essa proposta indecente! E que o patrono de nossas letras seja o criador da História dos Três Porquinhos, o imortal…” Sua voz sumiu em meio à algazarra de novos protestos e propostas. Não se ouvia nem mesmo o martelo da Coruja. Foi o Gorila que, fazendo do vasto peito um potente tambor, impôs de novo o silêncio e passou a bola pro Macaco. “Que é isso, bichos? Logo agora que a palavra está com a gente, nós vamos ficar cultuando o racista, decadente e quase extinto bicho homem? Viva a bicharada livre e o admirável mundo novo a construir!” Entre aplausos e vaias, um bicho amoitado esgoelou: “Já está macaqueando o maldito Huxley?” Mas, dessa vez, foi menos difícil para D. Coruja, afinal, abrir oficialmente os trabalhos. “Proponho, disse ela, dentro da melhor tradição humanística, começarmos com uma invocação ao ser superior, ao supremo arquiteto do universo, a cujo ato criacionista devemos nossa existência e a cuja graça devemos, agora, o dom da fala.” Não prosseguiu, porque foi cortada pelo Cavalo: “Fora a tradição humanística cínica e escravocrata!” E pela Tartaruga, recém chegada de Galápagos, de carona no papo do Pelicano: “Abaixo o criacionismo, viva o evolucionismo, glória ao eterno Darwin!” E pelo Cordeiro: “Chega de altares e ritos sacrificiais! Por um estado laico!” Aí veio a reação do Jacaré, que não economizou boca e dentes: “Já vão começar a macaquear o esquerdismo ateu?” Foi a custo que Dona Coruja conteve o protesto de símios e antropoides. Ia retomar seu discurso, mas o Pavão a atalhou, ostentando o leque das asas: “A senhora não tem autoridade para evitar que essa ralé promova no reino animal uma nova Babel e uma outra Bastilha?” Aplausos e vaias. Dona Coruja bateu o martelo, limpou a garganta, mas quem falou foi a Hiena: “Viva o reino animal! Todo poder ao nosso Rei Leão!” O Elefante rebateu de primeira: “Viva a república!” Maritacas gritaram em uníssono: “Salve a democracia!” A Girafa não economizou pescoço para manifestar seu apoio: “Eleições diretas já! Abaixo a monarquia!” O Leão, por sua vez, reagiu com desdém: “O que vem de baixo não me atinge!” Então o Morcego guinchou: “Quero de volta a ditadura!” Agito total na galera. O martelo de Dona Coruja cantou alto, mas quem tomou a palavra foi o Ouriço-Cacheiro: “Chega de política e de ideologias humanas. Precisamos de ações práticas que objetivem o desenvolvimento e o progresso da nova sociedade animal!” Nem aplausos nem vaias. Foi o Cupim quem rompeu o súbito silêncio: “Isso mesmo, precisamos construir prédios e cidades para que os bichos se tornem urbanos e civilizados.” A Toupeira logo emendou: “Vamos cavar túneis para os dutos e os metrôs!” E o Castor: “Sem esquecer os diques e as barragens que nos darão a necessária energia!” O Veado levantou a cabeça e ergueu a voz: “Ah! Já querem repetir o bicho homem: matar os rios, derrubar as matas, destruir a natureza e o planeta!” Então o Urso berrou: “Lá vem você, Bambi, com a velha viadagem dos ecologistas?” Houve um começo de briga que o Boi e o Hipopótamo apartaram. Dona Coruja bateu o martelo e ia abrindo o bico, quando a Cigarra lhe tomou a frente: “Vamos falar de arte, meu povo, de poesia!” No que a Formiga apartou: “Depois não venha pedir abrigo e comida em minha casa!” A Aranha interveio com firmeza: “Precisamos melhorar nossa comunicação, para que nossas discussões sejam proveitosas e produtivas. Vamos construir redes de comunicação social! Aí, sim, estaremos a caminho da civilização!” Nesse momento, Dona Coruja anunciou uma pausa para o almoço. A Cobra, enrolada em um tronco, sibilou para o Canguru: “Pelo jeito, breve seremos também expulsos do paraíso!” Ouvindo isso, a Raposa se assustou: “Sério? E vou ficar presa pra sempre na segunda divisão?” O Coelho, consolador, lhe deu um tapinha nos ombros e disse: “Só o Galo salva!”. E a Cobra: “Chora não, querida! Aceita uma maçã?”

Afonso Guerra-Baião, professor e escritor. Publicou as narrativas O INIMIGO DO POVO e A NOITE DO MEU BEM pela Amazon. Tem textos publicados em revistas literárias como o Suplemento Literário de Minas Gerais. Colabora em jornais e em sites como Curvelo online. Publica também em sua página no Face e em seu blog no You Tube.
Acaba de publicar SONETOS DE BEM-DIZER / DE MALDIZER, um livro que explora duas vertentes da poética clássica: a lírica, que provoca a emoção e a reflexão, e a satírica, que libera o riso e a catarse.
Afonso é torcedor do Galo.

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